Fica sem reação ao entrar no refeitório e não sabe se por conta do estupefaciente ou a situação singular do encontro dos dois desconhecidos naquele local tão familiar, entretanto não soa hesitante ao proferir o alto, grave e cordial “boa noite“ ao cidadão baixo e à adorável criatura que desconcerta-se ao vê-lo e não contém o sorriso quando o ouve. Sentada à janela, a mulher esforça-se para mantê-lo ao alcance dos olhos na esperança de que o contato os incendeie, a vontade arremesse um sobre o outro e, no choque, as roupas sejam violentamente arrancadas no intuito de fundirem-se. Dois confundem-se.
borbotoar
canapé
O ambiente é tão familiar que me comporto como se fosse realmente aquele que deixei para trás, mas, à medida em que reconheço os elementos e me aprofundo, a sensação de que tudo não passa de analogia da minha existência me provoca desconforto e, apesar de ainda negar que aquilo não é real, me dou conta de que tudo não passa de criação do meu próprio cérebro com a nítida intenção de atenuar o sofrimento que poderia provocar a consciência de que eu não existo mais ou de que estou, irremediavelmente, deixando de existir. É a tal fagulha se esvaindo.
Talvez tudo isso não dure mais do que uma fração de segundo, como quando comparo o tempo transcorrido em um sonho e seu equivalente quando acordado, mas ainda assim parece muito tempo. Muitas horas que bem poderiam ser dias ou anos, entretanto o necessário para que o esvair-se seja justificado ou deixe de importar. E, de fato, as questões que tanto me incomodam vão deixando de exigir respostas quanto mais eu exploro aquele ambiente. Não que as situações as respondam, mas os subentendidos e as análises superficiais passam a bastar.
Desencarnado, insisto em dobrar um jogo de toalhas e colocá-las sobre a velha mesa de centro que fora da minha avó e, há muitos anos e dois lares, não ocupa mais esse lugar no meio da sala — eis uma das muitas evidências do absurdo que eu presencio na experiência do não existir — enquanto parentes, em um exercício de mútuo consolar, tentam lidar com minha morte. O guia e um espírito-irmão me apressam e tentam me convencer da inutilidade daquilo que eu executo.
Muitos outros espíritos circulam pela casa, o que me dá a impressão de que fazem algum barulho nos cômodos, e, de vez em quando, meus familiares olham na direção do que foi o meu quarto como se ouvissem algo. Mesmo a reação deles não passa da manifestação da minha percepção acerca das suas crenças no metafísico.
O povo do lado de lá distribui canapés e é consenso, me dizem, de que o consumo deve ser imediato. Algum espírito de porco me conta, com o nítido objetivo de me provocar desprazer, que os tais canapés precisam ser consumidos rapidamente porque a sua validade é a mesma do corpo da alma que o produz e quando ele começa a apodrecer o mesmo acontece com o acepipe.
O guia e o espírito-irmão tentam desconversar, mas os dois canapés que tenho nas mãos rapidamente amolecem e assumem a forma e textura de carne acinzentada, então, nos poucos passos que cabem naquele metro e meio que me separa da pia, vermes surgem daqueles dois pedaços de carne podre.
mosaico
Bebíamos e você se movimentava para, com a serenidade habitual, manter o tom profissional à conversa. Nossas mãos serpenteavam, garçons questionavam e serviam enquanto cães destruíam os portões das garagens de casas conhecidas. Como um código, determinadas palavras na explanação da atividade, associadas ao modo como sua mão tocava meu ombro, costas e a proximidade dos seus lábios, me revelavam aquilo que, e eu não tinha mais como certo, você desejava esconder. Interrompi o seu esforço quando trouxe sua mão próxima ao meu rosto. Nunca a havia tocado com tanta suavidade. Senti o cheiro no seu pulso e o reconheci, mas deixei de lado a brincadeira sem arriscar palpites, sabia o que era, então me ative a acariciar a mãozinha e a me deixar levar pelo toque dos pequenos dedos e o perfume que do pulso ia à palma quente. Deu-me um presente disfarçado de tarefa e ele veio em formato de cartão, com palavras ocultas sob grossas camadas de nanquim que não me impediram lê-las, entretanto o comportamento para não alertá-la não me permitiu memorizá-las. Havia também um vídeo, gravado do interior de um ônibus de viagem, onde você, em calça preta e blusinha branca, caminhava. Nas imagens era noite e terminava contigo entrando em uma casa comum na minha terra, com muros baixos, portões de alumínio e piso de cacos.
pacientes são proibidos de se tocar
Quando recebe a notícia da alta despede-se dos outros pacientes e nota que alguém o observa da outra extremidade do pátio, então, entregue ao impulso, caminha em direção àqueles olhos miúdos, reflexo dos seus, afinal está há tanto tempo dopado que o faz sem hesitar e ela, ao entender a sua intenção, levanta e parte ao seu encontro arrastando os pés que parecem pesar toneladas. Ela oferece perigo, pensa, o pijama amarrotado revela que passara a noite toda atada à cama. Sussurram uma saudação e buscam um banco, mas não deixam de se olhar e antes que se deem conta, ou que palavras desnecessárias possam ser trocadas, suas mãos se tocam e se movem sensualmente. Naquele momento partilham um mesmo ofegar e então, sem desejar, desvencilham-se. Precisa ir. Pacientes são proibidos de se tocar.
pequenices
O cruzar das pernas sobre o suporte do conversor era sinal de que os olhos seriam irradiados, a mente inundada e, por vezes, sentimentos novos despertados, principalmente ao percorrer formas não comuns às pequenas que timidamente observava banhando suas Barbie. Bambalalão? Gigi... Gigi era diferente e “Pirulito Que Bate-Bate” sua trilha romântica.
Era 1982 e não compreendia a razão de ser do Naranjito. O sol que cegava também confortava incidindo sobre a jardineira marinho quando ela deitou à beira da piscininha do Parque Infantil e lançou aquele “vamos brincar de Bela Adormecida?”. Claro que seu estômago se contorceu, a brincadeira envolvia movimentos reservados aos adultos e, caso pegos, o castigo era certo, ainda assim quis muito tocar os lábios. Tristeza e alívio se instalaram quando a professora surgiu flagrando o quase ilícito.
Pés descalços e ioiôs faziam parte dos domingos, entretanto naquele a parenta pouco mais velha tinha algo diferente no olhar e um “grude” surgiu. Acabaram se abrigando no pequeno galpão de ferramentas e por entre os dentinhos separados veio o que tramava a massa sob os cabelos desgrenhados: “Me beija! Vamos fazer de conta de papai e mamãe!”. Pegos, rapidamente cruzaram as mãos nas costas tentando dissimular. Passaram tempo demais longe dos olhares vigilantes e a bronca foi inevitável. “Isso não é brincadeira de criança”. Sem surra, ao menos por ora.
mova os membros do títere teu
querida,
manuseia as cordas.
é o 0, o Ø
e o cinco e 50.
os ciclos fechados.
cara errado
A morbidez habitual toma o indivíduo quando em seu interior está o desconforto da prestidigitação, o nada ou são moribundas as poucas lembranças agradáveis e os odores não são mais identificáveis. Se tudo é menos palpável ao cerrar dos olhos, o maldito cara errado, o tal sempre à margem do coração de alguém, reconhecerá razão para vagar se nada resta?
fugas
Você bem sabe, eu sei,
fujo ainda.
Quando à janela me atenho,
fujo sim.
E sinto teu alvoroço interior,
teu desejo de compartilhar.
Quero derramar toda a verdade.
a camiseta
Tratava de fechar as janelas da casa quando a figura saltou sobre a cama. Interrompeu-me. Mesmo sem olhá-la diretamente, noto as pernas nuas sob a camiseta muito grande. Antes ajoelhada e agora sentada sobre os calcanhares, no momento em que decido me voltar para ela que, espreguiçando-se, põe-se em pé sobre os lençóis estendendo os braços em minha direção. Atropelo as incertezas e toco o verso dos joelhos da mulher que espreme os olhinhos a medida que o sorriso ganha tamanho e os braços, antes ao ar, repousam sobre os meus ombros e me envolvem o pescoço. Com força, e com apenas um braço, a abraço para, finalmente, o beijo. No momento em que as línguas se acarinham já a tenho sobre uma das mãos, as coxas a minha volta e as bocas apenas ensaiam a distância quando os olhos é que não podem mais adiar o encontro.
sub
ruim de verdade
A carcaça, em verdade um amontoado de rabiscos em forma de gato, deu uma volta no corredor enquanto a vizinha, agasalhada e que o saudou com um “boa noite” no dia claro, descia as escadas à garagem, então hesitou e voltou ao apartamento. No corredor viu também o sorriso pairando no ar como na velha animação. Socou, socou e socou até só sobrar aquilo, ainda a carcaça. “Deixa minha cunhada em paz!” e, em pensamento, estendia a recomendação à sobrinha que algo dizia era filha. Havia uma informação oculta. O que recebia os golpes, não parecia, era filho e nenhum dos dois imaginava. Instrumentos. Fantoches. Ferramentas. “Eles os enlouqueceram!”. Ou nada disso estava realmente acontecendo, ao menos não como os sentidos percebiam. Talvez ele fosse ruim de verdade. E só.
clandestino
Pode o amor, mesmo exercido na clandestinidade, ser aniquilado pelas convenções sociais, o preconceito, o ódio, o orgulho, a vaidade e “dois mais dois”?
liquefação
Arrastando-se, com a cabeça repleta de histórias inacabadas, deixa um rastro de lágrimas.
baldado
A luz forte da lâmpada do banheiro lhe irrita e exige que mantenha os olhos quase fechados ao escorar-se na pia. Sem razão, admira-se no espelho turvo e não reconhece o semblante com as enormes olheiras e a barba por fazer. Também não lembra quando a tal transformação aconteceu ou quando a criatura interior emergiu, mas sabe que a aparência anterior não condizia, apesar do confortável ar infantil que foi obrigado a habituar-se. Seus rituais sempre foram a manifestação do espírito velho, com o lenço no bolso, o vermute que preferia ou o baseado que enrolava sobre as antigas revistas ao som do garage.
há sempre uma história
Usando os mecanismos de sempre, conta histórias sem compartilhá-las e encontra no interior escuro a fagulha que prefere evitar, sinal de que fora cooptado pela lisonja, então, nubívago, prova o gostinho. Neste período os minutos se arrastam até que enfim “entende”, a desconstrução da palavra, apesar da referência, subverte o conceito e nega o nomeado, logo ele, que sempre foi NADA e agora se reconhece SEIS.
o acidente
As mãos à cabeça quando, do bordo da via, esforça-se para modular os batimentos através do controle da respiração. Elas escorregam e uma fração de segundo se passa até que compreenda que o líquido vermelho que as encharcam, e começa a gotejar com cada vez maior intensidade no asfalto, é seu sangue.
estação
Palavras ásperas às pessoas que se recusam a compreender e, violento, arremessa objetos quando sente a presença. Não a vê, pensa se novamente imagina coisas e, raivoso, caminha rapidamente para a plataforma. O som revela que o trem se aproxima, então cerra os punhos, prende a respiração e, quando dá início ao movimento do passo derradeiro, a mão pequena o paralisa ao tentar envolver seu antebraço. Surpreso, rapidamente se volta e é golpeado pelo dulçor do sorriso que não notara. Aventa envolvê-la pela cintura, mas bastam-lhe a caminhada e o silêncio enfim interrompidos pela voz agradável que bem conhece. Sua aura o toca.
de sangue doce
Sons na cozinha e uma nova pirueta entre as cobertas são o bastante para lançá-lo ao campo das incertezas e fazê-lo pensar se alguém realmente se movimentava lá, mas aniquilou a ideia com o habitual “dane-se”, afinal uma imagem mental qualquer sempre foi o bastante para dar início a fantasias plenas de mirabolâncias. Sentiu que só podia ser ela e, de olhos fechados, a “viu” pulando a cerca tomada pela hera e, ousada, movimentando-se entre panelas, ingredientes, odores e o calor do velho fogão.
A madrugada chegava ao fim — isso do tangível ele sabia — quando a luz do corredor invadiu o quarto e, cético, surpreendeu-se ao ver a senhora dos lábios mais rosa que já provara, em vestido negro e carregando uma bandeja coberta por um pano de cozinha colorido. Então ela se ajoelhou ao lado da cama e exibiu um caderninho negro antes que o nubívago abrisse a boca. Nele estavam as palavras dos tempos idos.
— Desculpa, eu nunca entendi o que você dizia e agora que entendo... É tarde demais. — ela disse com os olhos cheios d'água.
Ainda admirando a figura, que há anos não via, aninhou o rosto dela nas palmas e, enquanto secava as lágrimas com os polegares, disse:
— Não tem importância. Você fez o que quis. — e a beijou.
Na cama sugeriu uma música que ele nunca ouvira — a moça sempre foi boa de “trilha sonora” — e, sorrindo, ergueu os braços para que ele pudesse tirar o vestido. Em lingerie revelou o que trazia, os potinhos de vidro com um doce vermelho como o sangue, muito mais escuro do que o coração de goiabada de outrora. O despertar apagou o nome da guloseima.
nada
Torneira mal fechada, porta aberta e o ar gelado. Precisa do calor do gato que o ronda, necessita o colo que lhe é negado e está cansado da busca que leva a nada.
o autômato
“O autômato vaga, mas miolos e coração preferem outros caminhos. Hoje a dissociação é possível, a razão está de folga.”
acalanto
Sufocam o abraço e mesmo assim — quando a palma dela, hesitante e cujo calor incide sobre seu ombro, não o toca — sente seus braços a sua volta. A sensação não dura mais que um instante e este é o segundo que não consegue congelar.
telefonema
A alegria na voz deixou-o de pernas e miolo moles. Muitas vezes brincou com a interlocutora dizendo que não gostava de chamadas buscando as lembranças de garoto e suas breves conversas ao telefone, tão curtas que as pessoas acreditavam tratar de algum código secreto, tudo isso para corroborar a ideia que servia apenas para dissimular a sua falta de jeito ao ouvi-la, porém o rezingar ao fundo trouxe-o de volta do pequeno êxtase que a voz sempre provocava. Ela calou e ele esperou. Então um “não faça isso”, em tom triste da voz doce, ouviu direcionado a outro ator e novo silêncio se seguiu, tão longo que o obrigou a se manifestar. “Fulana?”. Ela permaneceu em silêncio por mais alguns segundos e, em um esforço nítido para retomar o tom usual, encerrou a ligação com o “beijo”.
garras
A chegada é sempre coroada com as palavras duras e inconvenientes daquele que faz questão de berrar “não me interessa” uma, duas, três ou quantas vezes bem queira na réplica às respostas dos, então evidente, desnecessários questionamentos. Há também o dedo em riste, as ameaças veladas, a forçada aproximação com a intenção de intimidar e o patético ar desafiador que para nada servem além de, em seu parco repertório, atestar a sua equivocada percepção da força e o falso entendimento do exercício do poder através domínio de um indivíduo sobre o outro e assim tentar arrancar da minha memória os sabores dos raros bons momentos que, com esforço, atribuo sobrevida.
madrugada
Duas horas de sono leve, pesadelos e sudorese noturna, então decide deixar o colchonete aos pés da cama da avó, beija o gato que boceja com sua bocarra rosa, pequenos dentes como agulhas e lábios negros, dirige-se à cozinha, coloca água para ferver e, depois de acomodar os travesseiros no sofá da sala, não resiste e beija também a cabeça do cão de miúdos olhos caramelo que, em círculo, repousa sonolento sobre uma almofada retangular. Ao passar o café a lembrança dos sonhos ruins o direciona à “Hotel Hell” e “Lather”.
tolo
Não saberá enquanto preferir perceber apenas por sob o franzir da testa e a distorção da ausência das lentes que carregava sobre o nariz.
cartão postal
Aquela tarde tropecei no teu nome e não lembrei de ti. Não te reconheci. Eu te amei, te quis e neguei. Depois senti tua falta. Vi tua mão desenhar aquelas letras no cartão. Perdoa, você nunca saberá. Não está mais aqui.
eu a vi
Eu a vi esta noite, sonhei contigo tão próxima e eu repleto de conflitos. Tua boca tão pertinho, teus lábios tão vermelhinhos e eu avancei o dedo de distância que os separava dos meus para, ainda com eles juntos, começar a articular um pedido de desculpas que a mente me fez engolir com o “se não para o beijo, qual a razão da boca tão próxima?” E tropeços e atribulações que, evidente, tinham vida apenas na esfera dos pensamentos. Então, com a tua língua na minha boca, provei da tua voracidade com o sabor da tua saliva. Suguei também teus mamilos e acariciei teus seios. Sorvi da tua buceta, regalo das carnes, tudo tão vívido... Despertei?
manhã
Ouve a risada, como a da primeira namorada, e sempre precisa de alguns segundos para encontrar os sentimentos que o rondam junto da vontade de correr a cintura para as mãos darem forma à barriga que as direciona ao triângulo que ata as coxas, enquanto o perfume dos cabelos constrói o sorriso na boca que busca a nuca.
fundo
Do fundo da sala a surpresa quando a figura pequena e pálida, em camiseta branca e jeans muito justos, entra. Com toda a força a quer perto, mas não crê na concretização da vontade até o momento em que ela, com os olhos miúdos sob a franja castanha e o delicioso hálito de conhaque, profere “oi”.
.380
Ela cospe fogo. Ele nunca viu um dragão de pernas tão belas. A .380 faz mais barulho do que ela e este foi o último ruído que o pobre coitado ouviu. Não teve tempo de arrepender-se.
éter
dissonância
“não estamos bem”, diz.
o olhar quer transparecer distância.
o deitar dos mesmos olhos revela desejo.
helena
Quando, na boca não tua, vejo os dentes pequenininhos e a brisa mais uma vez mover o desgrenhado, sinto com o perfume o hálito de malzbier. É inverno e o sol nos aquece ao tempo em que a grama umedece os nossos fundilhos.
oi, amor
“Construção”,
prelúdio da tempestade.
E o triste salão vazio?
Este me acentua a saudade.
Sempre o teu rosto...
Creio que me ama,
mas de verdade.
deixar de existir
A noite era a mesma em seu interior e não fazia diferença olhos fechados, olhar para dentro de si ou deitá-los à sua volta, afinal sempre foi matéria a se dissipar.
escapismo
Claro que ele quer e teve dificuldade em esconder o sorriso de satisfação ao obter o que não desejava querer. Verdade? Esteve sempre sob o negativo das promessas e, eventualmente, tão descarada quanto as velhas Color Climax. Já o sentido não passa de um privilégio deixado para trás, há muito, quando o dever subjugou o ser. Será o escapismo uma possibilidade ao tal “fugidio menteur”?
tácito
ele não se manifesta.
ela, comprometida, afirma “não traio”.
ele reconhece o absurdo que nutre.
ela o ensina a não negar o que sente.
derrama
Exercitou o desejo com quem ama, mas também com quem devorou pleno das vontades e valores das meias listradas.
contemplação
Respeitoso, desvia o olhar. Sentado, comprime as pálpebras a fim de sentir as palavras deslizarem enquanto as elaborações golpeiam os miolos. Ergue a cabeça, busca o perfume dela, então abre novamente os olhos e os direciona à esquerda, para o móvel onde muitas vezes se sentiu próximo por força das coxas que o envolveram e do toque dos calcanhares dos pés cruzados para mantê-lo preso.
mentiroso
Faz duas madrugadas que o céu alaranjado a transformou em sombra sorridente com os olhos sobre mim.
e eu continuarei mentindo... eu prometo
Nega a centelha para emergir buscando o ar rarefeito do plausível e crê-se espectro valendo-se da intangibilidade, porém está mais para médium vomitando ectoplasma.
de joelhos
segredo
Por que um desejo, formulado na madrugada e atendido, deveria assustar? Tolices à parte, quer mais é admitir a alegria da presença, mesmo que através da chorosa ansiedade provocada pela ausência que tem ares de fuga.
dislexia
Acha graça da lembrança dela comentando que não entenderia a sua letra e se envaidece ao reviver a voz e o olhar envergonhados da linda figura derramando que mesmo a sua não é bela e seu nítido tom de confidência ao dizer que sabia o que não conseguiria esconder dele.
gris
seres fantásticos
Estava escuro e a gata, ao morder a minha mão, tentava me alertar sobre algo. Por muitas vezes tentei aguçar a visão, mas via apenas um vulto, algo que parecia se mover sobre a porta na altura da ventarola. Sim, se movia mesmo. Ficou evidente quando fiz o som de sempre para chamar a gatinha e então pude vê-lo caminhando agarrado à parede, olhando para mim. Grandes olhos, ar assustado, corpo esguio e longos e finos dentes à mostra. Silencioso como um espectro, parecia mesmo não pertencer a este mundo. Mas o que eu conheço deste mundo afinal?
café
Quando sente o perfume não faz questão de evitar pensar nas xícaras grossas e na figura esguia que, de negro e cabelos presos, torcia nervosamente para que anotasse seu pedido.
filha
No sonho ela repousa a cabeça e a mão sobre o peito dele, gargalha enquanto conta histórias e a televisão berra antigos programas. Era menina a primeira vez que o procurou, tão triste que as lágrimas rolaram até que, já muito cansada, adormeceu e agraciou-lhe com a baba filial.
fuga
Meu reflexo não responde aos movimentos, tão imerso nos pensamentos que meu falso no vidro só faz é me observar. Quem sabe não fosse também capaz de ver a verdade se me pusesse a observá-lo? Atropelo os sinais por ignorância ou temor que assumam relevância no campo do plausível. Você me pergunta o que quero, então sufoco e dissimulo as vontades direcionando o olhar ao vazio ou aos muitos elementos que a janela me proporciona enquanto discorro e supervalorizo miudezas.
suspiro
Alegra-se ao notar a presença e então emudece. Não por não ter o que dizer, mas por pensar se deve realmente se manifestar. Quer com ela recordar, ouvi-la dizer que lembra e que também sente falta. Quer ouvir a voz e as palavras daquele domingo.
vagante
Através da noite flutua um espectro de formas suaves e que se movimenta sem nada tocar, com um sorriso sereno direcionado a si e olhos ao céu. Não deve realmente existir.
cama
Sua companheira já havia levantado quando finalmente deixa a cama. Com um sorriso distraído e cabelo desgrenhado, ela põe-se a arrumar os lençóis. O travesseiro dela é perfumado enquanto o seu cheira a suor.
azul
Não é o desejo de vislumbrar as pequenas nuvens perdidas entre botões o que tem a dizer o sonho recorrente?
sessão desenho
Saíram juntos, mas naquela manhã não eram mais os mesmos. De mãos dadas, como irremediavelmente atadas, após poucas quadras o impensável foi dito. Incapaz de responder o que desejava, covardemente transformou o sonho em culpa.
como hoje
Deleitava-se com o perfume dos cabelos enquanto o ininterrupto pipocar do motor sobrepunha-se ao ranger do casco da velha embarcação e a chuva densa, como uma cortina branca que vez ou outra ocultava a terra, golpeava-lhe o rosto.
semissono
Daquela sonolência desperta a mente em alvoroço e, buscando provas, a retina queima ante o que as telas irradiam, as palavras que apenas incitam o estado de inquietação. Dando as costas, franze o cenho e opta pelo calar. Tarde demais. O calar é calor do fogo que já o consome. A afirmação não estava na negativa, mas a verdade desvelava-se na negação.
gestalt
Podem tanta mágoa, tristeza e decepção terem ficado para trás? Apenas as boas recordações têm força para envenenar a alma e mantê-lo preso ao passado ou são os pensamentos ruins que estas lembranças agradáveis trazem que reafirmam a falta de perspectiva e a prescindibilidade?
pau mole
Não entendo essa excitação pau mole. Algo há no baixo ventre e com direito a pré-porra. Meio gozo sem ereção. Excitação mental. Desejo contido. A cara de desdém e a construção do abuso me dão nojo, mas o rabo delicioso, as pernas curtas, mãos e pés bonitos... Um tesão danado.
trepanação
Certa da própria discrição, acreditou que o flerte passaria despercebido. Para ocultar a insegurança, fez-se de desentendido. Ela se encantou e isso doeu.
aconteceu
Precisou, naquele breve espaço de tempo, racionalizar. Aproximaram-se, beijou-lhe a bochecha e educadamente abraçaram-se. Constrangeu-se quando ela carinhosamente tocou-lhe com o rosto o pescoço ao repousar a cabeça em seu ombro.
distúrbios visuais
Por um momento esqueço os rostos e corpos que dançam, falam comigo e me tocam, frutos da cabeça habitada por seres fantásticos, duendes descansando sobre frascos de colutório e bruxas perambulantes.
des mots II
— Eu sei que você tem desejo por mim. — ela diz com todas as letras.
— Não te quero mais. — ele mente para si.
dique
pedaços
des mots
Fantasiou a descrição dos gostos no rosto próximo e sob o perfume dos cabelos, o calor das coxas citadas ao pé do ouvido na ponta dos dedos e o suspiro ao tempo em que estreita o espaço entre as pernas.
eu te amo tanto
Ainda distantes, ela o viu e ele ao seu sorriso. A pequena já ia ligeiro e, quando mais perto, deu a corridinha para lançar-se aos braços dele. “Oi, Fá!” Não eram namorados.
popa
Na luta contra o preconceito é revelado o desejo naquela que faz “entrismo”. Esguia como lembrava e popas à mostra, sarra na situação a qual se sujeitou para ter a chance de boliná-la. A contrapartida? Ao descer a escada, após longo tempo tentando desfazer-se da ereção, outra sensualmente toca sua cabeça nua e com os lábios lilás beija sua boca. Ele ignora, afinal não quer dar corda à parcela incestuosa de quem o trai, enquanto na beberagem procura não esquecer os flashes que são como golpes no estômago.
cafofo
espelho da cachola.
se cova, de todo natimorto;
quando caixa, do escravo do irrepresável.
morada.
borzeguins
Quando a vejo, de pernas cruzadas e ostentando suas botinhas favoritas, penso em como era com o par de coturnos que usou até que encontrassem seu fim.
circum-navegação
De Áries para Sagitário, então de Sagitário até Libra e ao limbo. No vagar de dezenas de Eras, em três na meia vida e com o exaustivo tom de vida e meia, lhe ocorre a vontade de apenas circum-navegar.
los colores
À exceção da pele muy alva, lábios pálidos, os cabelos azuis que lhe mancharam a camiseta e as cuecas marinho que tão bem acomodavam a pequena bunda, o que restava era cinza em sua memória.
a raiva
um amor é amor, mesmo no éter
A vontade, mesmo nascida para habitar exclusivamente o campo das ideias, deveria bem bastar, afinal é também experiência completa e com fim em si, mas que mal, na mutualidade, um aceno considerar a sua existência plena? E como não permitir transbordar se também é como tocar?