Sons na cozinha e uma nova pirueta entre as cobertas são o bastante para lançá-lo ao campo das incertezas e fazê-lo pensar se alguém realmente se movimentava lá, mas aniquilou a ideia com o habitual “dane-se”, afinal uma imagem mental qualquer sempre foi o bastante para dar início a fantasias plenas de mirabolâncias. Sentiu que só podia ser ela e, de olhos fechados, a “viu” pulando a cerca tomada pela hera e, ousada, movimentando-se entre panelas, ingredientes, odores e o calor do velho fogão.
A madrugada chegava ao fim — isso do tangível ele sabia — quando a luz do corredor invadiu o quarto e, cético, surpreendeu-se ao ver a senhora dos lábios mais rosa que já provara, em vestido negro e carregando uma bandeja coberta por um pano de cozinha colorido. Então ela se ajoelhou ao lado da cama e exibiu um caderninho negro antes que o nubívago abrisse a boca. Nele estavam as palavras dos tempos idos.
— Desculpa, eu nunca entendi o que você dizia e agora que entendo... É tarde demais. — ela disse com os olhos cheios d'água.
Ainda admirando a figura, que há anos não via, aninhou o rosto dela nas palmas e, enquanto secava as lágrimas com os polegares, disse:
— Não tem importância. Você fez o que quis. — e a beijou.
Na cama sugeriu uma música que ele nunca ouvira — a moça sempre foi boa de “trilha sonora” — e, sorrindo, ergueu os braços para que ele pudesse tirar o vestido. Em lingerie revelou o que trazia, os potinhos de vidro com um doce vermelho como o sangue, muito mais escuro do que o coração de goiabada de outrora. O despertar apagou o nome da guloseima.